sexta-feira, 16 de setembro de 2011

...ação!

Sempre achou baboseira essas perguntas meio-auto-ajuda-meio-psicanálise de quem sou eu, como se imagina daqui a 30 anos, o que você espera do futuro. Para Coralina, Cora para os íntimos, o tempo era só questão de ponto de vista, e a vida vários frames vividos em segundo. Como cenas de filme antigo que adorava assistir, onde apenas os mais atentos notavam os detalhes, os milésimos de segundo que interrompiam um corte e outro dos takes. Gostava de imaginar-se em preto e branco, com as cores surgindo e esvaindo como quem expira e inspira o ar. Nunca soube dizer se encaixava-se ou não em algo, sempre esteve nos dois lados da moeda, presença e nuvens, mente e desleixo. Sabia que era algo, mas não gostava de definir-se ou descrever-se, para isso haviam os tantos livros em que se atirava, vivendo cada aventura, cada drama, cada novo começo e cada final conturbado, subentendido, incerto ou heróico. Na ânsia de viver mais uma história, entrou como de costume na livraria perto de sua casa, para sentar no seu lugar de sempre, um canto escondido ao lado da ultima estante, grudada a uma janela cor de ouro velho, emoldurando um enquadramento perfeito do jardim municipal - patrimônio da cidade, construído em 1946, em homenagem às vítimas da guerra, diziam os mais velhos - e distância considerável da máquina de café. Seu reino momentâneo, onde se enfurnava sobre os livros como quem devora um prato de comida após vários dias de fome, seu refúgio de todas as horas, sua fuga diária do mundo todo. Não estava afim de muita conversa, pegou o livro na estante B, literatura nacional, que ficava junto ao balcão e deu de ombros ao chamado de Mário, o funcionário chato com mania de limpeza, que sempre reclamava dos papéis de bala que Cora deixava de pirraça em cima da mesa. Ainda bem que ele estava atendendo um cliente, pensou, enquanto colocava o livro na mesa e ia com a ficha na mão em direção à máquina de café. Agora não faltava mais nada, livro, café e balas, sorriu. Quando ia atirar se atirar na cadeira, notou uma mochila entreaberta na cadeira, com um livro de capa marrom aparecendo. Como se atrevem a estar em sua cadeira, em sua mesa, em seu lugar? Desde que abriu, há mais ou menos uns dois anos, todos naquela livraria sabiam que aquele era "o" lugar da menina tímida-meio-espevitada cor de caramelo. Respirou fundo e preparou-se para começar uma terceira guerra mundial, quando sentiu tocarem seu ombro. 
- Quem é você? Perguntou um menino de cabelos encaracolados, óculos escuros e bochechas coradas.
- Oras, Eu é quem pergunto! Quem é você e o que faz em meu lugar? Não está vendo que tem um livro ai em cima? 
- Desculpe, eu...
Cora! Mario berrou enquanto vinha arfando em sua direção. - Esse aqui é Marcelo! Foi o que eu tentei te explicar, mas você nem me deu ouvidos. Ele é novo por aqui, e esse é o único lugar que fica perto da estante com os livros em braile!
- Ele é...
- Cego?! Sou sim, por isso não reparei que você tinha chegado. Ia justamente perguntar se o livro era seu.
- Er... me desculpe! 
- Não tem problema, me desculpe por ter pego o seu lugar. Vou trocar para outra mesa. Então você é Cora?
- Meu nome é Cora! Eu sou.. é, eu sou Cora! E acho que cabe mais uma cadeira aqui!
E sentiu então que a partir dali já não bastavam frames. O roteiro fora traçado pelo destino e o filme corria nas horas eternizadas daquela tarde. 



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3 comentários:

Post It disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Post It disse...

Mesmo com todo cuidado que a gente procura ter, vez ou outra acontecem esses pequenos deslizes em momentos de fúria. Ainda bem. Mostra que não somos perfeitos, que alguém pode nos ensinar alguma coisa e até mesmo marcar nossas vidas.

Eu gostei de Cora e me identifico com ela na ânsia pelos livros e pelo apego aos costumes confortáveis.

Muito bom, escreva mais contos também. Beijão!

Post It disse...

[postei na conta errada, fui eu, Hélder que comentei ali]